O pote
- Sarah Lima
- 20 de jun. de 2020
- 2 min de leitura
Ainda está escuro. O despertador toca, o coração dispara e a mente avisa para os olhos que é hora de abrir as janelas para mais um dia. Esticando as pernas, o cobertor é deixado de lado e os pés tocam o chão frio para calçar os chinelos.
Senta na cama e já segue para o banheiro. Lava o rosto, escova os dentes, pega o uniforme, veste-o e coloca o tênis. Passa na cozinha, faz uma xícara de achocolatado e põe no microondas. Enquanto esquenta, abre a geladeira e pega o pote da sobrevivência. Arrumada a mochila, toma o chocolate, coloca a xícara na pia com água para soltar o doce da manhã e sai de casa.
Entra no ônibus, se equilibra e desce no ponto. Chega ao serviço. Abre a porta, vai à cozinha e protege o pote na geladeira. Desce as escadas, bate o ponto e pega o elevador. Abre as janelas, o vento gelado invade a recepção. Dá comida aos peixes, troca o jornal do periquito, liga o celular da clínica, abre a agenda, inicia o computador e confere o caixa inicial.
Aplicativo assobia com as mensagens de banho e tosa para a quinta-feira. “Tem horário hoje?, Vou precisar de pet táxi!, A Paçoca vomitou ontem, o que pode ser? Olha a foto e mostra pra doutora....”. Os dedos tremem, com o inverno já chegando às 09h da manhã. Tecla, escuta áudio, fala ao telefone, explica o pacote de Day Care e recebe os pets para o banho. Bebe água. Hidrata as cordas. Ainda estamos na manhã.
O meio do dia chega. Hora de levantar da cadeira e ir recarregar as calorias que a pulseira inteligente já falou que gastou até o momento. Sobe o elevador, bate o ponto, entra na cozinha e abre a geladeira. Pega o pote, destampa e aquece no microondas. Os estalos são sem ensaio desta vez. Pelo som inicial já se decifra o que teremos para as papilas gustativas. Se tem carne, vamos ter chiados mais agudos. Se o dia é quase vegano, (o som vai ser como o campo verde: suave e sem graves notas. Se o do dia é molho, vai esquentar mais rápido e o calor será uniforme para todos os cantos do pote. O apito avisa que o pote está aquecido para ser devorado. Há dias que ele é degustado, em outros ele é devorado pela fome persistente e na rotina comum, apenas mastigado na hora certa.
Após 60 minutos, volta. Lava o pote, escova os dentes, bate o ponto e desce o elevador. Senta à mesa e organiza mais um dia que ainda não chegou. Libera mais cães, recebe outros e fecha o caixa. Alimenta os peixes, sobe com o periquito e bate o ponto. Pega o ônibus, desce, sobe a rua e entra em casa. Tira a roupa, toma banho e janta a comida preparada pela mãe. Mas, antes de servir, pega o pote que vai ser o sustento bem no meio do dia que ainda nem chegou.

Comments